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segunda-feira, 13 de fevereiro de 2012

O transporte “in utilibus” da coisa julgada coletiva


Como ensina Cândido Rangel Dinamarco, o direito moderno, em razão da aglutinação de interesses supra-individuais na sociedade de massa, tende a ser um direito da coletividade e não mais apenas direito dos indivíduos, como nos moldes tradicionais.

Logo, como reflexo da segunda onda renovatória do processo, percebeu-se que é socialmente útil afrouxar racionalmente as premissas individualistas da legitimidade individual e da limitação subjetiva da coisa julgada (art. 472 do CPC), na medida em que com a tradicional tutela exclusiva individual os direitos coletivos restam descobertos de proteção efetiva.

Destarte, uma das características do processo coletivo é o regime jurídico peculiar da coisa julgada, regulada pelo art. 103 do CDC, nos seguintes termos:

Art. 103. Nas ações coletivas de que trata este código, a sentença fará coisa julgada:
I - erga omnes, exceto se o pedido for julgado improcedente por insuficiência de provas, hipótese em que qualquer legitimado poderá intentar outra ação, com idêntico fundamento valendo-se de nova prova, na hipótese do inciso I do parágrafo único do art. 81;
II - ultra partes, mas limitadamente ao grupo, categoria ou classe, salvo improcedência por insuficiência de provas, nos termos do inciso anterior, quando se tratar da hipótese prevista no inciso II do parágrafo único do art. 81;
III - erga omnes, apenas no caso de procedência do pedido, para beneficiar todas as vítimas e seus sucessores, na hipótese do inciso III do parágrafo único do art. 81.

Analisando o tema, Fredie Didier Jr. e Hermes Zaneti Jr. ensinam que: “o regime jurídico da coisa julgada é visualizado a partir da análise de três dados: a) os limites subjetivos – quem se submete à coisa julgada; b) os limites objetivos – o que se submete aos seus efeitos; c) e o modo de produção – como ela se forma” (Curso de Direito Processual Civil. Processo Coletivo. Vol 4. 5 ed. p. 363).

Assim, o chamado transporte “in utilibus” da coisa julgada coletiva é uma forma de ampliação dos limites subjetivos da coisa julgada, permitindo que indivíduos venham a se beneficiar do que foi decidido em uma ação coletiva. É esta a norma contida na segunda parte do §3º do art. 103 do CDC:

§ 3° Os efeitos da coisa julgada de que cuida o art. 16, combinado com o art. 13 da Lei n° 7.347, de 24 de julho de 1985, não prejudicarão as ações de indenização por danos pessoalmente sofridos, propostas individualmente ou na forma prevista neste código, mas, se procedente o pedido, beneficiarão as vítimas e seus sucessores, que poderão proceder à liquidação e à execução, nos termos dos arts. 96 a 99.

O referido dispositivo permite que o titular de um direito individual liquide e execute a sentença coletiva que tutele direitos difusos e coletivos em sentido estrito, desde que verse sobre a mesma questão de direito. Fica garantido ao titular do direito individual a possibilidade de utilizar a sentença coletiva em seu processo individual, transportando “in utilibus” a coisa julgada.

A lógica do raciocínio aplicado aqui é a mesma do aplicado na esfera civil quanto aos efeitos da coisa julgada do processo penal: a sentença penal condenatória beneficia os titulares de direitos civis decorrente dos delitos, bastando a sentença do processo penal para que se ajuíze uma liquidação e execução no juízo civil (art. 63 do CPP e art. 475-N, II, do CPC).

Com isso se evita a proliferação de ações individuais, prestando maior efetividade à tutela do direito.
Neste sentido o STJ já decidiu nos seguintes termos:

(…) 5. É a indivisibilidade do objeto que determina a extensão dos efeitos do julgado a quem não foi parte sob o enfoque processual, mas figura como titular da relação de direito material tutelada. 6. A extensão dos limites da coisa julgada faculta a outrem utilizar (in utilibus) da condenação genérica oriunda da demanda coletiva para pugnar a satisfação ou reparação de seu direito individual, evitando a proliferação de ações condenatórias individuais e homenageando o princípio da economia processual e da efetividade do processo. (…) (STJ. REsp 648054 / RS. Relator Ministro LUIZ FUX. 25/10/2005)

Uma das finalidades do processo coletivo é resolver os litígios de massa (repetitivos), sendo este o fundamento para o CDC, em seu art. 103, §3º, permitir que a coisa julgada coletiva se estenda ao plano individual, estabelecendo que o indivíduo pode utilizar o objeto do que foi decidido em ação sobre interesses difusos ou coletivos em sentido estrito para liquidar e executar seus prejuízos.

Segundo Fredie Didier Jr. e Hermes Zaneti Jr., “isso significa que se, por um lado, a sentença coletiva de improcedência do pedido não produz efeitos na esfera individual, não prejudicando as pretensões individuais, por outro, a sentença de procedência nas ações para tutela de direitos difusos e coletivos “stricto sensu” poderá ser liquidada e executada no plano individual sem a necessidade de um novo processo para a afirmação do “an debeatur” (o quê é devido). Assim, os titulares dos direitos individuais homogêneos poderão promover ação de indenização dos seus prejuízos. A coisa julgada coletiva irá beneficia-los do mesmo modo que a sentença penal condenatória beneficia os titulares de direitos civis decorrente de ilícito penal.
Assim, uma sentença coletiva que verse sobre direitos difusos pode servir de título para uma execução coletiva e para uma execução individual, proposta pela vítima que se beneficiou do transporte in utilibus da coisa julgada coletiva. Obviamente, antes de executar a decisão, o indivíduo deverá proceder à liquidação do seu crédito, em que deverá demonstrar, inclusive, a existência do dano e do nexo de causalidade entre a conduta do réu e esse prejuízo. (...)” (Curso de Direito Processual Civil. Processo Coletivo. Vol 4. 5 ed. p. 371).

O STJ reconheceu a legitimidade do Ministério Público para ajuizar Ação Civil Pública na defesa dos direitos individuais homogêneos, na medida em que são espécie de direito coletivo lato senso, e é nessa condição que surge a legitimidade extraordinária do parquet. Isto porque a Ação Civil Pública que tutela direitos individuais homogêneos não se dirige a interesses individuais, mas coletivos. Todavia, nada impede que a coisa julgada “in utilibus” possa ser aproveitada pelo titular do direito individual homogêneo.

Extrai-se do voto do Ministro Relator o seguinte trecho:

(…) O novel art. 129, inciso III, da Constituição Federal habilitou o Ministério Público à promoção de qualquer espécie de ação na defesa de direitos difusos e coletivos não se limitando à ação de reparação de danos.
Hodiernamente, após a constatação da importância e dos inconvenientes da legitimação isolada do cidadão, não há mais lugar para o veto da legitimatio ad causam do Ministério Público para a ação popular, a ação civil pública ou o mandado de segurança coletivo.
Em conseqüência, legitima-se o Parquet a toda e qualquer demanda que vise à defesa dos interesses difusos e coletivos, sob o ângulo material ou imaterial.
Deveras, o Ministério Público está legitimado a defender os interesses transindividuais, quais sejam os difusos, os coletivos e os individuais homogêneos. Nas ações que versam interesses individuais homogêneos, esses participam da ideologia das ações difusas, como sói ser a ação civil pública. A despersonalização desses interesses está na medida em que o Ministério Público não veicula pretensão pertencente a quem quer que seja individualmente, mas pretensão de natureza genérica, que, por via de prejudicialidade, resta por influir nas esferas individuais.
A assertiva decorre do fato de que a ação não se dirige a interesses individuais, mas a coisa julgada in utilibus poder ser aproveitada pelo titular do direito individual homogêneo se não tiver promovido ação própria.
A ação civil pública, na sua essência, versa interesses individuais homogêneos e não pode ser caracterizada como uma ação gravitante em torno de direitos disponíveis. O simples fato de o interesse ser supra-individual, por si só já o torna indisponível, o que basta para legitimar o Ministério Público para a propositura dessas ações. (…) (STJ. REsp 700206 / MG. Relator Ministro LUIZ FUX. 09/03/2010)

Conclui-se portanto que o transporte “in utilibus” da coisa julgada é corolário do regime jurídico do processo coletivo, na medida em que busca dar efetiva proteção aos interesses individuais homogêneos, permitindo que todos os que tiveram seus direitos violados pela mesma causa resolvida em processo coletivo se beneficiem dos efeitos da coisa julgada, mesmo que não tenham sido parte na relação processual, afrouxando-se, assim, os limites subjetivos da tradicional coisa julgada do processo individual (472 do CPC).

4 comentários:

  1. Muito interessante.

    www.mauricioopereira.blogspot.com

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  2. Realmente, muito bom. Objetivo, se tergiversar. Nesse instante, leio mais de 180 páginas sobre o tema. Mas, consolidei o entendimento aqui, em poucas.

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