Como
ensina Cândido Rangel Dinamarco, o direito moderno, em razão da
aglutinação de interesses supra-individuais na sociedade de massa,
tende a ser um direito da coletividade e não mais apenas direito dos
indivíduos, como nos moldes tradicionais.
Logo,
como reflexo da segunda onda renovatória do processo, percebeu-se
que é socialmente útil afrouxar racionalmente as premissas
individualistas da legitimidade individual e da limitação subjetiva
da coisa julgada (art. 472 do CPC), na medida em que com
a tradicional tutela exclusiva individual os direitos coletivos
restam descobertos de proteção efetiva.
Destarte,
uma das características do processo coletivo é o regime jurídico
peculiar da coisa julgada, regulada pelo art. 103 do CDC, nos
seguintes termos:
Art.
103. Nas ações coletivas de que trata este código, a sentença
fará coisa julgada:
I
- erga omnes, exceto se o pedido for julgado improcedente por
insuficiência de provas, hipótese em que qualquer legitimado poderá
intentar outra ação, com idêntico fundamento valendo-se de nova
prova, na hipótese do inciso I do parágrafo único do art. 81;
II
- ultra partes, mas limitadamente ao grupo, categoria ou classe,
salvo improcedência por insuficiência de provas, nos termos do
inciso anterior, quando se tratar da hipótese prevista no inciso II
do parágrafo único do art. 81;
III
- erga omnes, apenas no caso de procedência do pedido, para
beneficiar todas as vítimas e seus sucessores, na hipótese do
inciso III do parágrafo único do art. 81.
Analisando
o tema, Fredie Didier Jr. e Hermes Zaneti Jr. ensinam que: “o
regime jurídico da coisa julgada é visualizado a partir da análise
de três dados: a) os limites subjetivos – quem se submete à coisa
julgada; b) os limites objetivos – o que se submete aos seus
efeitos; c) e o modo de produção – como ela se forma” (Curso de
Direito Processual Civil. Processo Coletivo. Vol 4. 5 ed. p. 363).
Assim,
o chamado transporte “in utilibus” da coisa julgada coletiva é
uma forma de ampliação dos limites subjetivos da coisa julgada,
permitindo que indivíduos venham a se beneficiar do que foi decidido
em uma ação coletiva. É esta a norma contida na segunda parte do
§3º do art. 103 do CDC:
§
3° Os efeitos da coisa julgada de que cuida o art. 16, combinado com
o art. 13 da Lei n° 7.347, de 24 de julho de 1985, não prejudicarão
as ações de indenização por danos pessoalmente sofridos,
propostas individualmente ou na forma prevista neste código, mas, se
procedente o pedido, beneficiarão as vítimas e seus sucessores, que
poderão proceder à liquidação e à execução, nos termos dos
arts. 96 a 99.
O
referido dispositivo permite que o titular de um direito individual
liquide e execute a sentença coletiva que tutele direitos difusos e
coletivos em sentido estrito, desde que verse sobre a mesma questão
de direito. Fica garantido ao titular do direito individual a
possibilidade de utilizar a sentença coletiva em seu processo
individual, transportando “in utilibus” a coisa julgada.
A
lógica do raciocínio aplicado aqui é a mesma do aplicado na esfera
civil quanto aos efeitos da coisa julgada do processo penal: a
sentença penal condenatória beneficia os titulares de direitos
civis decorrente dos delitos, bastando a sentença do processo penal
para que se ajuíze uma liquidação e execução no juízo civil
(art. 63 do CPP e art. 475-N, II, do CPC).
Com
isso se evita a proliferação de ações individuais, prestando
maior efetividade à tutela do direito.
Neste
sentido o STJ já decidiu nos seguintes termos:
(…)
5. É a indivisibilidade do objeto que determina a extensão dos
efeitos do julgado a quem não foi parte sob o enfoque processual,
mas figura como titular da relação de direito material tutelada. 6. A
extensão dos limites da coisa julgada faculta a outrem utilizar (in
utilibus) da condenação genérica oriunda da demanda coletiva para
pugnar a satisfação ou reparação de seu direito individual,
evitando a proliferação de ações condenatórias individuais e
homenageando o princípio da economia processual e da efetividade do
processo. (…) (STJ. REsp 648054 / RS. Relator Ministro LUIZ FUX.
25/10/2005)
Uma
das finalidades do processo coletivo é resolver os litígios de
massa (repetitivos), sendo este o fundamento para o CDC, em seu art.
103, §3º, permitir que a coisa julgada coletiva se estenda ao plano
individual, estabelecendo que o indivíduo pode utilizar o objeto do
que foi decidido em ação sobre interesses difusos ou coletivos em
sentido estrito para liquidar e executar seus prejuízos.
Segundo
Fredie Didier Jr. e Hermes Zaneti Jr., “isso significa que se, por
um lado, a sentença coletiva de improcedência do pedido não produz
efeitos na esfera individual, não prejudicando as pretensões
individuais, por outro, a sentença de procedência nas ações para
tutela de direitos difusos e coletivos “stricto sensu” poderá
ser liquidada e executada no plano individual sem a necessidade de um
novo processo para a afirmação do “an debeatur” (o quê é
devido). Assim, os titulares dos direitos individuais homogêneos
poderão promover ação de indenização dos seus prejuízos. A
coisa julgada coletiva irá beneficia-los do mesmo modo que a
sentença penal condenatória beneficia os titulares de direitos
civis decorrente de ilícito penal.
Assim,
uma sentença coletiva que verse sobre direitos difusos pode servir
de título para uma execução coletiva e para uma execução
individual, proposta pela vítima que se beneficiou do transporte in
utilibus da coisa julgada coletiva. Obviamente, antes de executar a
decisão, o indivíduo deverá proceder à liquidação do seu
crédito, em que deverá demonstrar, inclusive, a existência do dano
e do nexo de causalidade entre a conduta do réu e esse prejuízo.
(...)” (Curso de Direito Processual Civil. Processo Coletivo. Vol
4. 5 ed. p. 371).
O
STJ reconheceu a legitimidade do Ministério Público para ajuizar
Ação Civil Pública na defesa dos direitos individuais homogêneos,
na medida em que são espécie de direito coletivo lato senso, e é
nessa condição que surge a legitimidade extraordinária do parquet.
Isto porque a Ação Civil Pública que tutela direitos individuais
homogêneos não se dirige a interesses individuais, mas coletivos.
Todavia, nada impede que a coisa julgada “in utilibus” possa ser
aproveitada pelo titular do direito individual homogêneo.
Extrai-se
do voto do Ministro Relator o seguinte trecho:
(…)
O novel art. 129, inciso III, da Constituição Federal habilitou o
Ministério Público à promoção de qualquer espécie de ação na
defesa de direitos difusos e coletivos não se limitando à ação de
reparação de danos.
Hodiernamente,
após a constatação da importância e dos inconvenientes da
legitimação isolada do cidadão, não há mais lugar para o veto da
legitimatio ad causam do Ministério Público para a ação popular,
a ação civil pública ou o mandado de segurança coletivo.
Em
conseqüência, legitima-se o Parquet a toda e qualquer demanda que
vise à defesa dos interesses difusos e coletivos, sob o ângulo
material ou imaterial.
Deveras,
o Ministério Público está legitimado a defender os interesses
transindividuais, quais sejam os difusos, os coletivos e os
individuais homogêneos. Nas ações que versam interesses
individuais homogêneos, esses participam da ideologia das ações
difusas, como sói ser a ação civil pública. A despersonalização
desses interesses está na medida em que o Ministério Público não
veicula pretensão pertencente a quem quer que seja individualmente,
mas pretensão de natureza genérica, que, por via de
prejudicialidade, resta por influir nas esferas individuais.
A
assertiva decorre do fato de que a ação não se dirige a interesses
individuais, mas a coisa julgada in utilibus poder ser aproveitada
pelo titular do direito individual homogêneo se não tiver promovido
ação própria.
A
ação civil pública, na sua essência, versa interesses individuais
homogêneos e não pode ser caracterizada como uma ação gravitante
em torno de direitos disponíveis. O simples fato de o interesse ser
supra-individual, por si só já o torna indisponível, o que basta
para legitimar o Ministério Público para a propositura dessas
ações. (…) (STJ. REsp 700206 / MG. Relator Ministro LUIZ FUX.
09/03/2010)
Conclui-se
portanto que o transporte “in utilibus” da coisa julgada é
corolário do regime jurídico do processo coletivo, na medida em que
busca dar efetiva proteção aos interesses individuais homogêneos,
permitindo que todos os que tiveram seus direitos violados pela mesma
causa resolvida em processo coletivo se beneficiem dos efeitos da
coisa julgada, mesmo que não tenham sido parte na relação
processual, afrouxando-se, assim, os limites subjetivos da
tradicional coisa julgada do processo individual (472 do CPC).
Muito interessante.
ResponderExcluirwww.mauricioopereira.blogspot.com
Muito esclarecedor.
ResponderExcluirRealmente, muito bom. Objetivo, se tergiversar. Nesse instante, leio mais de 180 páginas sobre o tema. Mas, consolidei o entendimento aqui, em poucas.
ResponderExcluiralgum modelo sobre essa execução?
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