Para configuração do ato de improbidade previsto no art. 10 da Lei 8.429/92 exige-se, necessariamente, o efetivo prejuízo ao erário?
A pergunta é pertinente, e causa divergência doutrinária e jurisprudencial. Isto se dá porque no próprio texto legal há uma aparente contradição. O art. 21 da LIA (Lei 8.429/92) dispõe expressamente que:
“Art. 21. A aplicação das sanções previstas nesta lei independe:
I - da efetiva ocorrência de dano ao patrimônio público, salvo quanto à pena de ressarcimento; (Redação dada pela Lei nº 12.120, de 2009).”
Por sua vez, o art. 10 da LIA prevê:
“Art. 10. Constitui ato de improbidade administrativa que causa lesão ao erário qualquer ação ou omissão, dolosa ou culposa, que enseje perda patrimonial, desvio, apropriação, malbaratamento ou dilapidação dos bens ou haveres das entidades referidas no art. 1º desta lei, e notadamente: (…)”
Vê-se assim que o art. 10 da LIA exige a ocorrência de dano ao erário, ao passo que o art. 21 diz que sua ausência não impede a aplicação das sanções previstas na lei, sem fazer qualquer ressalva ao art. 10 do mesmo diploma. Ou seja, o Art. 10 reclama o efetivo dano ao patrimônio público, ao passo que o art. 21 o dispensa.
Diante disso, há quem defenda a existência de prejuízo presumido para configuração de atos de improbidade previstos no art. 10 da LIA, conclusão obtida pela leitura de alguns dos incisos do referido artigo, como por exemplo o inciso VI: “realizar operação financeira sem observância das normas legais e regulamentares ou aceitar garantia insuficiente ou inidônea;”
Flávia Cristina Moura de Andrade e Lucas dos Santos Pavione, apontam que “a matéria não é pacífica na doutrina (…) Wallace Paiva Martins Junior entende que as hipóteses previstas nos incisos encerram prejuízo presumido, ao passo que as hipóteses enquadráveis no caput implicariam na comprovação da perda patrimonial” (Improbidade Administrativa. Ed. Jus Podivm. p. 99).
Há portanto aqueles que defendem a possibilidade de enquadramento de atos de improbidade no art. 10 da LIA mediante a presunção de danos ao erário; outros entendem que as hipóteses enquadráveis no caput implicariam na comprovação do dano, e nos incisos seria possível a presunção; e os que entendem que os atos de improbidade previstos no art. 10 exigem o efetivo prejuízo ao erário, sob pena de não-tipificação da conduta.
Haveria, para esta última corrente, uma exceção ao inciso I do art. 21, o qual somente deve ser aplicado nos casos de improbidade administrativa descritos nos arts. 9º e 11 da LIA.
Nada obstante, entendemos que há na verdade duas situações distintas que devem ser tratadas de modos diferentes.
Um primeiro ponto inquestionável é o de que a LIA tutela a probidade na administração, e não somente o erário. Logo, não são somente os agentes de atos que causem dilapidação do patrimônio público que devem ser punidos: merecem sanção todos os autores de atos ímprobos, imorais.
Neste diapasão, o conceito de patrimônio público adotado pela LIA merece interpretação ampla, tomando-se como base o conceito de patrimônio público que foi adotado na Lei de Ação Popular, como sendo os bens de valores econômico, artístico, estético, histórico ou turístico. Portanto, a expressão “patrimônio público” não deve ser tomada como sinônimo de erário, pois este termo abrange somente o aspecto econômico do patrimônio público.
A doutrina entende que “o prejuízo não deve ser aferido exclusivamente sob o prisma pecuniário, partindo-se do pressuposto de que o conceito de patrimônio público deve ser o mais amplo possível, de forma a dar máxima eficácia ao dispositivo em comento.” (Flávia Cristina Moura de Andrade e Lucas dos Santos Pavione. Improbidade Administrativa. Ed. Jus Podivm. p. 54).
Deste modo, mesmo que um ato não venha a causar danos aos cofres público, pode sim ser considerado ímprobo e sujeitar seu autor às penas previstas da LIA.
Ocorre que, em uma segunda situação, para configuração de ato de improbidade que cause lesão ao erário (art. 10 da LIA), parece-nos óbvio que a lesão deva ser verificada no caso concreto. Ausente o dano não há que se falar em tipicidade da conduta no art. 10 da LIA. Todavia, nada impede que a conduta venha a ser enquadrada em um outro dispositivo da lei, seja no art. 9 ou no art. 11, pois “a lesão a princípios administrativos contida no art. 11 da Lei nº 8.429⁄92 não exige dolo ou culpa na conduta do agente, nem prova da lesão ao erário público. Basta a simples ilicitude ou imoralidade administrativa para restar configurado o ato de improbidade. Caso reste demonstrada a lesão, e somente neste caso, o inciso III, do art. 12 da Lei n.º 8.429⁄92 autoriza seja o agente público condenado a ressarcir o erário.” (STJ. REsp 714935⁄PR, Rel. Ministro CASTRO MEIRA)
O que não se reputa cabível é subsumir um ato que não cause lesão a um artigo de lei que a exija para ser aplicável.
Portanto, podem haver atos de improbidade administrativa que não causem danos econômicos ao patrimônio público, mas, para configuração do ato de improbidade previsto no art. 10 da Lei 8.429/92 exige-se, necessariamente, o efetivo prejuízo econômico ao erário.
É este também o entendimento adotado pelo STJ, conforme julgado recente, de agosto do presente ano:
ADMINISTRATIVO E PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO ESPECIAL. IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA. LEI N. 8.429/92. PRETENSÃO DE QUE A CORTE DE ORIGEM REJULGUE OS FATOS ENQUADRADOS NO ART. 11 DA LEI DE IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA, AO FUNDAMENTO DE QUE O REJULGAMENTO DO QUE PERTINE AO ART. 10 DA REFERIDA LEI FORÇA NOVA ANÁLISE DE TODOS OS FATOS. IMPOSSIBILIDADE. SÚMULA N. 7 DO STJ.
1. A configuração dos atos de improbidade administrativa previstos no art. 10 da Lei de Improbidade Administrativa (atos de Improbidade Administrativa que causam prejuízo ao erário), à luz da atual jurisprudência do STJ, exige a presença do efetivo dano ao erário (critério objetivo), o mesmo não ocorrendo com o tipo previsto no art. 11 da mesma lei (atos de Improbidade Administrativa que atentam contra os princípios da Administração Pública), que se prende ao volitivo do agente (critério subjetivo).
2. Na Lei n. 8.429/92, o prejuízo ao erário e o dolo não são interdependentes, podendo aquele, inclusive, ocorrer por culpa do administrador ímprobo.
3. A pretensão recursal de ver caracterizada a violação do art. 11 da Lei n. 8.429/92 passa, necessariamente, pela análise da existência do dolo, e não enseja a verificação do efetivo dano, o que faz incidir, na espécie, o entendimento da Súmula n. 7 do STJ, uma vez que é necessário o reexame fático-probatório para o fim de revisar o entendimento da Corte de origem, que consignou a existência do dolo no agir dos réus.
4. Agravo regimental não provido. (STJ. AgRg no REsp 1177579 / PR. Ministro BENEDITO GONÇALVES. Data do Julgamento 16/08/2011)
Portanto, os atos de improbidade previstos no art. 10 exigem o efetivo prejuízo ao erário, sob pena de não-tipificação da conduta, sendo que existe uma exceção ao inciso I do art. 21, o qual somente é cabível nos casos de improbidade administrativa descritos nos arts. 9º e 11 da LIA.
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